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domingo, 26 de dezembro de 2010

Bar doce lar - Memórias do Zicartola.



Olá, 

No ano de 1963, em um sobrado na Rua da Carioca, número 53, centro do Rio de Janeiro, surgiu o Zicartola, restaurante e bar comandado pelo sambista Cartola e sua mulher, Dona Zica. Leiam a pequena crônica  de Herminio Belo de Carvalho sobre o lugar.


Bar doce lar

Bar que se preze não se envergonha de ser também chamado de boteco ou botequim. O chamado bar doce lar tem é que guardar certas características menos formais, e sem as quais sofre sério risco de se tornar um lugar irremediavelmente chato, cercado de restrições por todos os lados. Por exemplo, não pode ser proibido cantar e tocar violão nas mesas, porque seria a mesma coisa que impedir que se reze em igrejas ou, sei lá, que se jogue bola nos gramados de futebol. Bar não deveria acolher os lamurientos, os bêbados inconvenientes nem os eternos desamados. Mas sem eles, convenhamos, os bares andariam mais vazios – pois a clientela de um bar sério é toda ela constituída com segmentos díspares da sociedade, dos cornos aos comi-quietos, dos que falam aos berros ou dos que parecem estar à beira de um confessionário. Bar ideal tem que ter os componentes físicos e espirituais que consagraram, por exemplo, o “Zicartola”: samba, comidinha caseira e bebida farta.

Lá jogava-se conversa fora, e ao som de Cartola, Zé Keti, Paulinho da Viola, Ismael Silva, Geraldo das Neves.
Os quitutes eram de Zica, e o que segurava a casa era um pouco o espírito zorreiro do carioca, com todos os seus alto-falantes ligados – e que me lembre nunca vi garrafa voando nem desafeto se atracando com outro. Bate-boca, lenga-lenga eram coisas em desuso. Já a Taberna da Glória, que em priscas eras recebeu desde Mario de Andrade a Araci de Almeida, não tinha absolutamente nada em especial – a não ser a atmosfera, alma, calor humano. Nem era bonita a casa.

hermínio no palco improvisado com
nelson cavaquinho ao violão e zé keti cantan
do

O chope era geladíssimo, mas a cozinha deixava a desejar. Bem, se vocês ainda não perceberam, é um carioca quem lhes fala. Um carioca legítimo, que conhece palmo a palmo, bar a bar, a cidade que habita. Não chega a ser um “expert” feito o Albino Pinheiro e o Jaguar, até porque não é chegado a um chope, embora a barriga teime em desmentir o que lhes juro ser absolutamente verdade.
O que desejava dizer é que há um ano eu fui chamado para descerrar a placa do “Vou Vivendo”, na qualidade de padrinho da casa – prerrogativa que me foi outorgada muito mais pelo fato de ter bebido com Pixinguinha e dele ter sido parceiro, do que por outras qualidades que possa exibir. Mas o que desejo atestar é que o nosso bar guarda todas as características essenciais a um lugar de bom caráter. Porque bar, se não tem bom caráter, melhor é desistir de freqüentá-lo. Ganhou São Paulo, ganhou a música brasileira e ganhamos todos nós – inclusive os boêmios mais legítimos – um lugar que em tudo se assemelha ao universo pixinguesco, o bar que ele elegeria como seu e onde, vez por outra, ainda saxofonaria em canjas que se tornariam memoráveis.

Herminio e Ismael Silva
Um teste infalibilíssimo que faço com meus amigos do Rio é esse de dar o endereço do “Vou Vivendo”: não há quem retorne com desagrado, queixa ou deitando falação contra. O bar é bonito, não tivesse o toque do Elifas. Música boa é o que não falta. Seus donos guardam uma enorme qualidade: gostam de beber. Porque dono de bar que não bebe, esse não merece sucesso na vida. Como bar também é cultura, acredito até que um novo movimento estético vá sair daqui, das mesas do “Vou Vivendo”. Aqui tudo tem vida, sopro, amor, estrelinhas nas toalhas de mesa e até jornalzinho-cardápio.

Enfim: um botequim de caráter, um boteco que Mario de Andrade gozaria em frequentar. Elogio maior isso eu não posso fazer.

Fonte de pesquisa: Acervo Herminio Bello de Carvalho 

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