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sábado, 8 de janeiro de 2011

Coisa da Antiga: São Ismael 80 anos.



Um Olhar diferente sobre Ismael Silva, compositor, cantor, grande sambista responsável pela criação da primeira escola de samba no Brasil  e pelo samba Se você jurar.

Apreciem,

São Ismael 80 anos por Herminio Bello de Carvalho

Velhos amigos, amigos velhos. Melhor dizer: mais antigos na escala do tempo. Chegaram sempre à minha vida com um certo atraso, daí não ter sido suficientemente longa a convivência: Pixinguinha, Eneida, Donga... Das mais longas (e também penosas) foi minha amizade com Ismael Silva. Sua música eu a conheci na década de cinqüenta, na casa de um pintor de vanguarda, que me abriu olhos e ouvidos para Drummond, Araci de Almeida, Picasso e jazz, em geral. Por essa época eu habitava o quarto de fundos de uma vila, exatamente em frente ao prédio do Di Cavalcanti. Minhas paredes eram recobertas por ilustrações recortadas de “O Cruzeiro”. Ao pintor Walter Wendhausen, enfim, devo duas outras grandes paixões – Marc Chagall e, também, Nellie Lutcher, que se tornaria, três décadas depois, minha “cozinheira” oficial em Los Angeles. Quem dela nada souber (há somente um disco editado no Brasil) pergunte a dois queridos amigos meus. PHDs em Miss Lutcher: Dorival Caymmi e Marcos Vasconcelos.

Na casa de Walter, comecei a me afeiçoar aos sambas de Ismael, cantados por Chico Alves, Mário Reis, Araci de Almeida, Alcides Gerardi. Um dia, por volta de 1954, eu tinha ido entregar umas faturas (trabalhava como boy numa empresa de navegação) ali nas imediações da Galeria Cruzeiro, quando reconheço Ismae1 numa loja de discos. Havia sido lançado um dez polegadas – Ismael interpretando sambas que fez sozinho, ou de parceria com Noel e Newton Bastos. Seu rosto, apagado há muito da memória das pessoas, me era familiar aos olhos, tantas vezes a imprensa publicara suas fotos, anunciando seu retorno artístico. Claro que fiz o que sempre faço nessas ocasiões: me atirei aos seus braços tal qual fiz com Ingrid Bergman, na porta do Cambridge Theatre de Londres, quase aos prantos. A Rádio Nacional urdiu em mim um idólatra por natureza.

Logo – e exibindo-o como se fosse um velho amigo – passaria a levá-lo a todos os lugares. Acrescentei à sua então pouco numerosa lista de companheiros um verdadeiro batalhão de quase-meninos, honrados em serem os escudeiros do mais freqüente parceiro de Noel. Um artigo de Vinícius, na Revista da Música Popular, do Lúcio Rangel, coroaria nosso encanto. Título: “Mestre Ismael Silva”. E começava assim: “Quem conhece de verdade o bom samba carioca não hesita em colocar Ismael Silva como um dos três maiores sambistas de todos os tempos.”

Difícil a semana em que eu não passava ali, na Gomes Freire, num boteco estrategicamente localizado ao lado de um edificiozinho onde morava Maria Muniz – eu já na condição de seu colega da Rádio MEC, para onde fora levado pelas mãos generosas do prof. Mozart de Araújo. Não só pelas mãos mas também por uma carta-artigo, publicada em setembro – mês de aniversário de Ismael – de 1956, na já citada revista do Lúcio. E publicada, acrescente-se, graças à doce cumplicidade e aquiescência de Manuel Bandeira, a quem, espevitadamente, eu ousava responder um artigo sobre literatura de violão. Não devo omitir, por justiça, que abasteci meu artigo, onde cito Ismael, no arquivo de Jodacil Damasceno, que comigo compôs o tal mistifório – travessura até hoje lembrada e citada por Drummond, o que pelo menos atenua o delito e a presunção.

Ali naquele boteco – que trocaria, já no fim da vida, por um outro na esquina da Riachuelo –, Ismael ia mostrando verdadeiras pérolas inéditas do seu repertório. Aprendi-as quase todas, cantava em dueto com ele – e isso está registrado no Lp do meu centenário, porque foi assim mesmo que uma moça se referiu aos cinqüenta anos que fiz há pouco, “de vida artística”, como provavelmente ela supôs. Quem ao lado dos velhos anda velho também é. E, dentro desse raciocínio, como desaprovar sua desinformação?

O jovem amigo levaria sua idolatria-quase-paixão ao extremo, num flamante poema que faz parte do meu primeiro ou segundo livro, tão desconhecido como os outros que vieram depois... “Visão chagalleana de São Ismael, o sambista, debruçado sobre todos nós”. Essa santidade eu logo atribuí ao sexagenário amigo, por conta da devoção que tinha a seus sambas, um até composto de parceria comigo e incluído no show “O samba pede passagem”, que Vianinha e Armando Costa escreveram para o Teatro Opinião em dezembro de 1965. Santidade que a vida foi tratando de contestar no plano humano, revelando um ser extremamente amargo e ressentido, talvez pela quase penúria de sua vida – ele que, no imaculado terno de linho branco, aparentava uma situação financeira que se contradizia no próprio quarto onde habitava, num sobrado ali perto do bar que frequentávamos. Esse quarto eu conheci muito tempo depois, quando uma úlcera varicosa já devastava as pernas do sambista, impedindo-o de locomover-se. Não dispensava a cerveja, que tomava quente. E aos poucos a bengala, o chinelo e as ataduras foram impedindo que carregasse o violão espanhol que lhe dei e que exibia, faceiramente, aos amigos. Seus aniversários eram comemorados ali no Beco do Rio, já nas fronteiras da Taberna da Glória, que também frequentávamos. 
Em 1965, eu, ligeiramente abonado com o sucesso do “Rosa de Ouro”, não poupei economias para festejar os sessenta anos de São Ismael. A bebelança teve que se estender para a Taberna, já que mais de 3 pessoas dentro do meu apartamento viravam multidão. Glorioso pedaço: vim descobrir há pouco tempo que minhas janelas davam para as janelas onde Mario de Andrade se exilara, ali na Santo Amaro, e que minha Taberna também já o agasalhara, em noites de profunda solidão. Ismael era um grande contador de histórias: memorialista nato, mas colocando uma porta intransponível no período escuro da sua vida – justamente aquele que provocara um hiato em sua carreira de compositor. Aqui e ali Ismael sofria tropeços ao contar a própria história, sobretudo sua ligação com Chico Alves. Mas chegou a me afirmar que, realmente, era só de Newton Bastos a primeira parte do “Se você jurar”. Mário Reis me informou que o samba inteiro era do Newton, mas fico com a versão do Ismael.

Também foi desagradável o episódio do Zicartola, quando o levei para trabalhar lá. Brigava para ser o último e fechar com chave de ouro a programação e acabou pretextando falta de pagamento para denunciar Cartola numa Delegacia de Polícia. Ismael, positivamente, não andava de bem consigo. Jamais abordamos o assunto de sua sexualidade, nem tampouco os reais motivos que o fizeram amargar uma detenção em 1935. Tudo isso fazia parte de um período escuro, um pedaço do inferno de São Ismael. Verdade sim: colocava sempre na primeira pessoa a responsabilidade pela criação da primeira Escola de Samba, a Deixa Falar, omitindo os outros pioneiros. Mas falava também de uma valsa de Orestes, protótipo que confessava utilizar para compor suas músicas. Conheço-lhe um plágio, talvez inconsciente: de um choro que transformou em samba-canção. Mas deixo aos historiadores revelarem essas amarguras, que trouxeram para Ismael uma tristeza, flagrada em determinados momentos, quando se punha quieto e abatido – quase ferido de morte. Mas ele saltava da angústia, lépido e fagueiro, para falar de Prudentinho – Prudente de Moraes Neto – que, junto com Vinícius e Lúcio Rangel, o colocava no pódio dos compositores. Ou do então nascente Chico Buarque, que nele apontava na época sua grande influência, mais do que a de Noel Rosa, que lhe era atribuída.

Pixiguinha e Ismael Silva

São Ismael? Sim, como compositor. Mas nem tanto como ser humano, graças a Deus um mortal sem as divindades que eu lhe atribuía e que meus amigos, jovialmente, anunciavam à sua chegada: – São Ismael chegou!
Tiradas fantásticas, como a do cara que vinha desembestado num carro e bateu num poste: “Vinha embestado”. Também implicava com anúncio do tipo “procura-se empregado”. Deveria ser, segundo ele, “procura-se um desempregado”. Tinha lógica, como tinha, também, estranhar a expressão “homem de cor”. Ouvindo-a, fazia cara de desentendido: – “É verdade? É azul?”... – e ia por aí desfiando a palheta, ante a expressão aturdida do interlocutor desavisado, e, obviamente, preconceituoso. O santo era encapetado nessas horas. Ou “capetado”?
Magro, pesava cem quilos quando o levava ao médico ali no prédio da Sloper; um alemão especializado em varizes e que logo detectou: se adiada mais um tempo a consulta, seria fatal a amputação. Dolorosos curativos, bandagens apertadas, precedidas de injeções locais – ah! um horror a que eu assistia com a solidariedade que, hoje, não sei se teria coragem de prestar. Meses e meses de tratamento e Ismael garantindo que ainda me faria a surpresa de voltar aos sapatos, largar a bengala e aparecer no velho linho branco que lhe conferia a aura de santidade. Um dia realmente telefonou, voz grave: – “É São Ismael”. Fui buscá-lo. Ele calçado, sem bengala, temporariamente livre da doença que retornaria, estimulada pela cerveja quente que, acho, nunca deixou de tomar.
Remoer o porquê do afastamento – e da quase surda indiferença que passou a me devotar – é coisa que ainda não destrinchei direito. Só sei que nossos raros encontros – eu os provocava – resultaram num esforço inútil, numa tentativa de reatamento do que já era nó górdio e eu não percebia.
Quando morreu (acho que foi Sérgio Cabral quem me deu a notícia) fomos lá ver o seu corpo, ainda no hospital. Aos historiadores não furto um dado, que lhes parecerá, no mínimo, de mau gosto relatar: com a nossa aquiescência, o tratador de defuntos injetou-lhe na boca uns chumaços de algodão, para que não parecesse tão magro como estava. Achava escabroso esse detalhe. Agora acho apenas um tanto folclórico. Lembro que, algum tempo depois, doei ao Museu da Imagem e do Som o livro que lhe dei, como terapia, para que escrevesse as letras das músicas (inclusive as inéditas), cujo levantamento fiz com muito carinho. Alguns desses sambas, repassando o livro noutro dia, sei, quase com certeza, só eu os tenho na memória.
Essas reflexões – e alinhá-las resultaria num livro – eu as faço setembrinamente: São Ismael estaria completando oitenta anos. Num espetáculo que fizeram em sua homenagem, há um slide em que aparece curvado agradecendo à platéia as palmas a ele devidamente dirigidas. Fiquei feliz. O reconhecimento do público era o que mais buscava em vida. E ali, naquela foto, ele era, mais do que nunca, o meu São Ismael Silva.


 Fonte de pesquisa: Site Acervo HBC

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